
Se há coisa catita, ela é chegar de viagem, e no lugar se apresta, à hora exacta de ali pôr o pé, os sinos repicarem como cm dia de festa. Gosto de uma boa bimbalhada, e nada de confusões que isto nao mete bimbos nem camafeus ou outras fealdades. Falo dc sinos, isso sim, sinos a esvoaçarem pelos ares corno crianas cm baloiços empurradas pelas mãos firmes do capelão. E os badalos cm contradança e a música tosca mas bela e a aldeia suspensa até ao último repicar.
Ainda estou de olhos fechados, levado na correnteza do eco, quando o decano Frangelico sai para o pátio a barafustar, que faltou uma marcha, que os santos vão ficar coléricos, que não há remédio que cure o ouvido duro do capelão. Duas velhas de xailes negros pelas costas e narizes delgados como corvos estão sentadas num muro a contar bagos de ervilha. Riemse entre dentes da fúria do decano.
Além das velhas c de ties rapazes entretidos numa roda de pião, a praça central de Sinalunga é como urna iluminura medieval. As casas da aldeia toscana não chegam a urna dúizia e são de granito coberto de musgo. Sai funo cm anéis das chaminés e passam vultos nas janelas que não se detêm. Na sacada da igreja, urna senhora robusta de avental e uma crina de cabelo louro espanca um tapete e canta músicas de La I Dolce Vita. Paira na aldeia urn halo de música, como se de cada reentrância, de cada laje, de cada poro de tena, saísse uma nota para uma sinfonia. O decano Frangelico volta a aparecer no pátio (seni bara fustar).
Traz uma enxada e presos no cinto da sotaina tufos de várias ervas. Cheira a urzebrava, a salsa e a hortelà. SeguimosIhe os passos e vemoolo atravessar uma cancela que dá para um olival e uma vinha. Vemolo agora curvarse e enterrar a enxada a pazadas vigorosas. Nisto, as velhas desatam riunì riso desalmado. Da torre sai o capelão, zaranzo e de pernas abauladas, como se fosse corrido a pontapés. É um homem novo e corado mas tem tima corcunda de dromedário e uma barriga descaída de muitas litradas de cerveja e aguardente. Chamase Benito e parece uma caricatura do defunto ditador.
Cenas de Aldeia. I Deixamonos estar um bom bocado de ombros na ombreira a ver as cenas da aldeia, como se estivéssemos numa peca de Bernardo Santareno ou na antecâmara de unta comédia bufa. Benito chegase a nós, numa linha em ziguezague, e saudanos com um sonoro bc;nvniuo e dois ternos beliscões nas bochechas. I Depois de um par de evocações a Amálias e Figos Eusébio já não é o rei em título falamos de afinidades do paladar assunto que muito Ihe agrada. O capelão domina a carta de vinhos lusitana, e tem especial amor por Cabeças de Burro além de medronho e porto doce (e um poico doce tambérn é coisa que não renegue). Entre padres e prazeres (comedidos) sempre houve boa vizinhança.
No caminho por uma vereda de ciprestes até à Locanda dell' Amorosa, o casaro de pedra e heras onde iremos ficar nestes dias, Benito discreteia com erudição sobre as virtudes do solo da Toscana, as colheitas de vinho da última década, o azeite e a fecundidade das vacas e ovelhas. E se já íamos convencidos de estarmos no caminho certo para as bemaventuranças (acompanhados de um guardião do templo com tiques de folião), quando desembocamos Locanda restanos agradecer por a sorte no ser madrasta. Dali, a paisagem é esta e apenas esta sem mais nada a perturbar a delícia da vista: o monte Cetona e o vale de Sinalunga e as rosas silvestres cm flor na orla da montanha.
É uma tìpica casa medieval numa vila que tern apenas urna fortificação em redor de uma praça central, um campanário, uma capela e urna vintena de casas de agricultores. Lugar de produção ele vinhos (eleito o melhor da Toscana) e azeitonas. Ironia do destino, foram as casas rurais convertidas ao turismo que salvaram a lavoura. A Locanda não é a única hospedaria mas é certamente a mais charmosa da terra e da região. Nota breve: em julho, os campos de girassóis resplandecem e das suas pétalas escorre azeite como lágrimas de Felicidade (palavras de poeta).
Vemonos à nora agora perdidos entre o sonho e a hipótese de isto ser verdade. Sentimos uma vontade irresistível de mandar o trabalho à uva e ficar no exílio, plantar batatas, escrever livros infantis, lazer mais filhos, fundar um lar para anarquistas, um asilo para gatos e cães vadios (e cágados), um apartido político (não nesta ordem de prioridades necessariamente)... Acordamos com urn picapau em ensaios matutinos a escarafunchar o lambril. Fomos ver o músico, dc touca na cabeça para não espantar o bicho.
Tem uma crista azul como uma criada de tule e quando nos vê, de olho remeloso, barba espigada e touca, não tuge nem muge nem debanda. Cansado deste lacealace com criaturas estranhas, o picapau bebe urna gota de orvalho e volta a partir pedra. No olival., o decano Frangelico arenga e incensa os campos. Os sinos tocam outra vez, outras vezes. Por quem? Pela maravilha de estar vivo num domingo longe de tudo e de todos. Descemos ao pátio ainda de robe e deixamonos guiar pelo faro. Na laje está um tabuleiro repleto de latias de pão, compotas, queijos, iogurtes (em boiões de parafina), bolos, tortas, tartes... a fartura é tanta que quase nos dá vontade de desistir e contentarmonos com as frutas fresquíssimas do pomar. Dois labradores pretos ajudamnos na tarefa de aviar um tabuleiro que daria para alimentar uma casa dc família.
Avisamos os nossos corpos inanes que não sairemos daqui nas próximas horas nem que a vaca beiçuda tussa, lá longe no campo de girassóis. Uma senhora de casaco de tweed e cabelo apanhado num toque, que deduzimos ser a governanta, traznos uma resma de jornais de várias procedências. Ocorremnos pensamentos vagos com Joanas d'Arc, filmes de Murnau e os desenhos animados do Dartacão. Talvez para mais logo aquele passeio pacato, de mãos dadas, à descoberta dos encantos da região quem sabe até Siena passar o dia. Por agora, damos ares de letrados e ficamos com o maço todo dc jornais para apoiar os pés. Simplesmente. Pelo puro prazer de fare niente, ou tudo. A dois, claro.
Texto de Luís Sapador i fotos de Antonio Nascimento.